sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Preparador físico e auxiliar técnico?

Papel do preparador físico no futebol moderno extrapola o viés fisiológico, sendo necessária a sua participação na formatação do modelo de jogo da equipe
Lucas Vinícius Nascimento e Renato Buscariolli de Oliveira
Olá, caros amigos!
Excepcionalmente para a confecção deste artigo, abdiquei do meu companheiro de escrita, William Sander Figueiredo, e estou acompanhado de um novo colega de profissão – Lucas Vinícius Nascimento –, o qual tive o prazer de conhecer na cidade de Laranjal Paulista, em julho, em um destes torneios de férias realizados com atletas das categorias de base. Aliás, fazendo um adendo a este tipo de torneio, cuja finalidade é propiciar aos atletas a possibilidade de interagirem com equipes de outros estados, reforço a importância destes para nós profissionais do futebol, uma vez que nos permite avaliar a qualidade do trabalho desenvolvido, assim como a realização de novos contatos.
Vale lembrar que me refiro aos torneios de alto nível, com representantes de grandes clubes brasileiros ou equipes oriundas de novos projetos que contam com excelente infraestrutura e profissionalismo.
Finda esta introdução, o tema que trazemos à tona surgiu de nossas conversas acerca das condutas por nós adotadas em nosso dia-a-dia de treino. De forma sucinta, nós, “preparadores físicos”, vimos por meio deste explicitar o quão importante é para este profissional conhecer o jogo de futebol e suas nuances técnico-táticas e não apenas conhecer os aspectos físico e fisiológicos deste mesmo jogo.
Assim sendo, acreditamos que a tradicional “preparação física” concebida de forma fragmentada e descontextualizada do jogo não cabe mais no futebol moderno. Aliás, esta prática vai contra um dos princípios mais antigos do treinamento desportivo, o princípio da “especificidade” que, em suma, afirma que o treinamento deve ter uma íntima relação com a modalidade praticada. Ou seja, no futebol, o treinamento deve ter uma íntima relação com o jogo e possibilitar a vivência de situações que venham a potencializar o desempenho dos atletas no jogo em si. Logo, se os treinamentos devem ser realizados neste contexto, a função do “preparador físico” não se limita ao planejamento e ao controle do treino, dado pela quantificação do número de sprints, da frequência cardíaca ou da distância percorrida. Agora, o papel do preparador físico vai além, já que somado a este conhecimento fisiológico do que sucede com a manipulação das variáveis do treino (volume, intensidade, densidade, aspectos metabólicos etc.) cabe ao mesmo subsidiar o treinador com possibilidades e ideias para que os objetivos pretendidos no planejamento técnico-tático sejam atingidos.
Assim, na preparação física moderna, a complexidade do jogo nos inviabiliza de reproduzir treinos antigos e ultrapassados concebidos através de uma visão fragmentada, já que estes não preparam para o que realmente irá acontecer em uma partida. Com o intuito de exemplificar as linhas até então descritas, trazemos aqui alguns dados gerados em uma sessão de treino da categoria infantil executada no mês de junho deste ano.
Partindo do princípio que as valências físicas são desenvolvidas como consequências das situações de jogo ocorridas durante o treinamento e não como objetivo principal da sessão e baseados na teoria da complexidade, monitoramos um atleta (sub-15) durante uma sessão de treino. O objetivo é explicitar ao leitor como é possível através de pequenos ajustes e conhecimento teórico-prático, auxiliar o técnico no desenvolvimento do seu trabalho (modelo de jogo), assim como monitorar e adequar o desempenho dito “físico” dentro deste contexto.
De acordo com o exposto, o objetivo do treino em questão é trabalhar a transição defensiva da equipe. Assim, de acordo com o modelo de jogo pretendido, definiu-se como regra de ação deste princípio operacional recuperar a posse da bola o mais rápido possível, atacando a mesma sempre que estiver sem sua posse. Logo, nenhum objetivo físico foi traçado previamente.
O monitoramento do treino se deu através da utilização de um cardiofrequencímetro somado a um acelerômetro. O atleta monitorado foi um jogador de meio-campo e o treino foi dividido em três etapas:
1ª etapa - aquecimento (relação com a bola) – total: 15 minutos
• Muita mobilidade articular, mobilização muscular geral, alguns fundamentos com bola em duplas (ênfase para perna não dominante) e alguns saltos para realizar o cabeceio;
2ª etapa - jogo geral de transição defensiva – total: 20 minutos (4 x 5’)
• Espaço de 15x15 metros, 4 x 2. Posse de bola feita em superioridade numérica. Uma vez perdida a posse de bola, evitar que a bola transite para a outra metade do campo (Figura 1). Pausa de 1’
3ª etapa - médio jogo de transição defensiva – total: 40 minutos (2x20’) 
• Espaço de 50m x 30m, 10 x 10. Uma equipe ataca o gol grande (com goleiro) e a outra quatro golzinhos laterais. Pontua-se fazendo gols ou recuperando a bola no mesmo quadrante em que se perdeu a posse (Figura 2).
Dentro do planejamento traçado pela comissão, o objetivo do treino foi alcançado, uma vez que os atletas conseguiram se organizar para recuperar a posse da bola tanto no jogo menos complexo (Figura 1) quanto no jogo de maior complexidade, cuja estruturação do espaço exigia uma maior compactação e flutuação em virtude da presença do grande número de alvos (gols). Estes jogos, denominados gerais (ou mesmo “Conceituais”) podem evoluir para os chamados “Conceituais em Ambiente de Jogo”, nos quais as regras aproximam-se do jogo formal. Em nosso exemplo, uma possibilidade seria: espaço de 100m x 60m, dividir o meio-campo ofensivo em quatro quadrantes (30m x 25m). Uma vez perdida a posse, caso consiga recuperar no mesmo quadrante = 1 ponto.
Em relação ao controle das variáveis físicas do treino, o atleta monitorado percorreu uma distância de 5.800m. Destes, 827m foram a uma intensidade baixíssima (0km/ a 3,7km/h), 1937m em intensidade relativa a caminhada e corrida lenta (3,8 a 6,0 km/h), 1576m de trote ou corrida leve (6,1 a 8,7 km/h), 823m de corrida média a rápida (8,8 a 12 km/h), 514m muito rápido (12,1 a 19,3 km/h) e 123m em máxima velocidade (19,4 a 30 km/h). A média da frequência cardíaca do atleta foi de 151bpm e a máxima 197bpm.
No que tange o papel do preparador físico nos ajustes do treino (além da escolha das regras), podemos destacar a determinação do espaço de jogo, o número de participantes e a densidade do treino (relação estímulo/pausa). Desta forma, o 1º jogo, em decorrência de um menor espaço de execução e menor número de participantes, foi realizado em uma alta intensidade, já que o atleta permaneceu cerca de 80% do tempo jogado com uma frequência cardíaca (FC) média acima da correspondente ao limiar anaeróbio. Desta forma, a intensidade média foi mais alta do que a desenvolvida no jogo formal, no qual o jogador permanece em média 30% do tempo acima da intensidade correspondente ao limiar anaeróbio (Buscariolli, 2007). Logo, fez-se necessário o ajuste do tempo em quatro blocos de cinco minutos para que a intensidade (assim como a qualidade técnica) não caísse ao longo do treino.
Na outra atividade, como o espaço e o número de participantes era maior, pode-se utilizar um maior tempo de execução antes de pausa, apesar de a intensidade ter sido relativamente alta (50% do tempo com a FC com valores supralimiares). De acordo com os dados, podemos dizer que este tipo de atividade parece ser eficaz para adaptar a capacidade aeróbia dos atletas e pequenos ajustes podem otimizar as possíveis adaptações físicas geradas neste sentido. Como conclusão, podemos dizer que o papel do preparador físico no futebol hoje extrapola o viés fisiológico, sendo necessária a sua participação como um “auxiliar técnico”. Em um futuro próximo, essa conduta pode vir a ser a norma dentro do treinamento no futebol. Vale destacar que um tipo de conhecimento não exclui o outro e não podem ser classificados como mais ou menos importantes.
Para finalizar, uma citação acerca do jogo (na essência da palavra) encontrada no livro “O Jogo – As leis naturais que regulam o acaso”, de Manfred Eigen e Ruthild Winkler, que talvez explique por que existem certas coisas que a ciência ainda não explica sobre futebol:

 
“O acaso e as regras são os elementos do jogo. O jogo começou entre as partículas elementares, os átomos e as moléculas, sendo hoje continuado pelas células do nosso cérebro. Não foi o homem que inventou o jogo, mas é o jogo, e apenas o jogo, que torna o homem mais completo.”

Um grande abraço e até a próxima!
Bibliografia
Buscariolli R, Lizana CR, Fontão FJ, Figueiredo WS, Souza R, Silva FOC, Scaglia A. Periodização integrada no futebol: É possível treinar a capacidade aeróbia apenas no contexto do jogo? XXX Simpósio Internacional de Ciências do Esporte – CELAFISCS – São Paulo-SP – 2007.

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